Quadra da Camisa Verde e Branco em Barra Funda São Paulo

A tradição carnavalesca de São Paulo era o cordão. Havia algumas escolas de samba, porém (e sempre tem um, porém), os bambas da pesada eram os cordões. Camisa Verde e Branco (branco mesmo), Vai-Vai, Paulistano da Glória, Campos Elíseos, Som de Cristal eram todos famosos cordões. E o cordão paulista tinha batida diferente das escolas de samba, tinha outras figuras e outras mumunhas. Eu disse "tinha". Porque, que eu saiba, não existe mais nenhum cordão em São Paulo. Os que não acabaram de vez se transformaram em escolas de samba. Como é o caso do Vai-Vai e do Camisa Verde e Branco, que foram os que mais resistiram, antes de se transformarem em escolas de samba. E o fim dos cordões, sem dúvida nenhuma, se deve ao elitismo, ao paternalismo das autoridades que, quando resolvem incrementar algumas manifestações espontâneas do povo, mesmo quando estão bem intencionadas, só atrapalham. Isso porque as autoridades, sempre tão distantes das bases, tomam suas medidas dentro dos gabinetes, escutando assessores que geralmente se preocupam com o brilhareco que resulte em algum lucro e nunca nos interesses da coletividade. No caso do samba de São Paulo, não deu outra coisa. O Prefeito Faria Lima resolveu, com a melhor das intenções, oficializar o Carnaval de São Paulo. Mas deve ter consultado gente que sempre achou que nesta cidade não havia samba, nem sambistas. E essa gente, sem vacilar, desconhecendo totalmente o que é Carnaval, desconhecendo que carnaval não se resume apenas em desfiles, nem em escolas de samba, que desfile e escolas de samba são um aspecto do carnaval, que existem vários outros aspectos que também devem ser considerados, essa gente estava interessada na cascata que podia fazer em torno da oficialização do Carnaval e não na preservação dos costumes carnavalescos do povo desta cidade. E então, sem nenhuma cerimônia, fizeram a presepada: oficializaram o Carnaval. Mas, na lei, ficou claro que o único evento carnavalesco que a Prefeitura se via obrigada a realizar era o desfile das escolas de samba. Resultado, todo incentivo da Prefeitura para as escolas de samba e nenhum para os cordões que, diante da indiferença das autoridades, foram se extinguindo ou virando escolas de samba, puxadas aos defeitos das escolas do Rio de Janeiro (é mais fácil copiar defeito que virtude) e se desvinculando totalmente das raízes culturais de São Paulo. O samba paulista é diferente do samba baiano que se instalou no Rio de Janeiro a partir da casa das "tias". O samba paulista é mais puxado ao batuque, ao samba de trabalho. Do toco, durão. O samba paulista vem das fazendas de café. O crioulo vindo do interior ia se instalando perto dos locais de trabalho: Jardim da Luz, Barra Funda, Largo da Banana, Praça Marechal, Alameda Glete, Bexiga, Rua Direita, Praça da Sé. E aqui, como no Rio de Janeiro, a polícia perseguia o samba e os sambistas. No Rio de Janeiro, os pagodeiros subiam o morro e a polícia se acanhava, e aí, não havia remandiola. O samba era solto, batido na mão, espalhado pelo terreiro. Aqui, o sambista se recolhia nos porões e lá puxava o samba, mas, naturalmente, não era a mesma coisa. Um samba espalhado debaixo de um céu cheio de estrelas e de luar e um samba espremido em porões, nos quais crioulo de mais de um metro e setenta tinha que mostrar o que sabia todo dobrado, pra não bater com a testa nas vigas. E quando o pagode esquentava, era tanta poeira que subia, que só era possível saber que estava havendo samba pelo ronco da cuíca e pelo gemido do cavaquinho, porque ver, não se via ninguém. São muitos os grandes sambistas de São Paulo: Vassourinha (Olha aí, carnavalescos de escolas de samba, que andam com mania de enredo com vida de artista: esse foi gente grande e de muita embaixada no rádio), Dionísio Camisa Verde, Marmelada, Jamburá, Feijó, Pato N’água, Sinval, Inocêncio Mulata, Carlão do Peruche, Nenê da Vila Matilde, Pé Rachado, Zezinho do Morro da Casa Verde, Geraldão da Barra Funda, Chiclete, Zeca da Casa Verde, Toniquinho, Nego Braço, Zoinho, Dona Eunice, Sinhá, Donata, tudo gente que mantinha o samba na rua na época em que a polícia acabava samba na base do chanfralho. Tudo gente de valor provado no meio das batalhas. Tudo gente que saía nos cordões pelo prazer de sair, por gostar de samba, por querer sambar. No centro da cidade, muitas vezes, um cordão que ia encontrava um cordão que vinha. Então, era coisa pra valente. Ninguém recuava. Os cordões se cruzavam. Tinha um ritual todo cheio de parangolé. O baliza de pau de um cordão protegia a porta-estandarte do outro cordão. Os estandartes (ou bandeiras) eram trocados com muita gentileza e muito respeito. Depois de um tempo, se destrocavam os estandartes (ou bandeiras) e aí o pau comia. Navalha, tamanco, porrete entravam na fita pra bagunçar o pagode. Pato N'água foi levar uma cabrochinha lá pras bandas de Suzano. Amanheceu boiando numa lagoa, comido de peixe e de bala. Dizem que foi a primeira vítima do Esquadrão da Morte. Ninguém sabe direito. Defunto não fala. O que se sabe é que a notícia chegou ao Bexiga à tardinha, na hora da Ave-Maria, e logo correu pelos estreitos, escamosos e esquisitos caminhos do roçado do bom Deus. E por todas as quebradas do mundaréu, desde onde o vento encosta o lixo e as pragas botam os ovos, o povão chorou a morte do sambista Pato N'água. E o Geraldão da Barra Funda, legítimo poeta do povo, chorou por todos num bonito samba chamado Silêncio no Bexiga. O Largo da Banana era o lugar aonde os caminhões que vinham do interior encostavam pra descarregar. Ali se juntava a curriola. Enquanto não vinha caminhão se armava o samba duro. Jogava-se a tiririca: É tumba, moleque, é tumba é tumba pra derrubar tiririca, faca de ponta capoeira vai te pegar Dona Rita do Tabuleiro quem derrubou meu companheiro Abre a roda, minha gente que comigo é diferente E só parava na roda quem se garantia. E o Inocêncio Mulata (ex- presidente do Camisa Verde e Branco da Barra Funda) sabia tudo. Tudo e mais alguma coisa. E no Carnaval, puxava no surdão um famoso trio de couro. Ele no surdão, o Feijó na caixa de guerra e o Zoinho no tamborim. Paravam num boteco qualquer e começavam a zoar. Ia juntando gente, juntando gente e aí o rio saía pela Barra Funda, com uns duzentos sambando atrás. Na Praça Marechal, já eram dois mil, na Glete, cinco mil. Aí, era zorra, zorra total, até a polícia chegar. Foi nesse trio de couro que o Inocêncio ganhou o apelido de Mulata. Logo ele, que não é de fazer careta pra cego, resolveu aprontar pro Feijó, que não podia ver rabo de saia. O Inocêncio pegou um vestido da Dona Sinhá, meteu um turbante, se embonecou e ficou na moita. O Feijó e o Zoinho, que estavam no boteco esperando o companheiro de trio, foram tomando todas. Quando já estavam bem bebuns, e achando que o Inocêncio não viria mais, ele se apresentou vestido de mulher. Fez sucesso pro Feijó, que achou aquilo uma tremenda mulata e foi logo pagando cerveja. Mais encantado ainda ficou o Feijó quando aquela mulata pegou no surdo e mandou ver. O trio saiu. O Feijó todo preocupado com a mulata e alimentando ela com cerveja até a Glete. Aí, o Feijó resolveu partir com tudo. Se entortou. O Inocêncio tirou o turbante e se apresentou. O patuá do Feijó entortou. Mas o Inocêncio ganhou pra sempre o apelido de Mulata. Mas a guerra se avacalhou. Não existe mais trio de couro, nem bloco de sujo, nem vai-quem-quer. Essas manifestações espontâneas do povo, que sempre a polícia tentou acabar sem conseguir, acabaram graças às promoções carnavalescas da Prefeitura. No lugar dessas coisas todas, a Prefeitura meteu o Trio Elétrico. A própria poluição sonora, que com guitarras elétricas e grandes aparelhos de som, esmagavam, apagavam qualquer instrumento de couro batido por um sambista. Alguns músicos defendiam essa jeringonça como mercado de trabalho, mas se esqueciam que um toca-fitas e uma Kombi faziam o mesmo efeito que esse trio elétrico. E esqueciam que faltava mercado de trabalho porque muitos bailes de Carnaval em São Paulo eram animados por toca-fitas e que a própria Prefeitura promovia um bailão pra quarenta mil pessoas, com toca-fitas. São Paulo sempre teve muito carnaval. Mas hoje está tudo resumido no desfile das escolas de samba e nos bailes dos clubes. E isso tudo é muito triste. Porque o Carnaval sempre serviu pras manifestações espontâneas do povo. E tudo agora vai se resumindo num espetáculo pra atrair turista. Feito no gosto dos turistas e avaliados pelos padrões culturais das elites. E isso dói. Porque um povo que não ama e não preserva suas formas de expressão mais autênticas jamais será um povo livre. Hélio fez história, não bagunça, ele fez a primeira fantasia para brincar no carnaval escondido da mãe. Hélio Romão de Paula, o Hélio Bagunça, é parte da memória samba paulistano. por Letícia Delamare Foi em 1951, menino ainda, que Hélio Romão de Paula fez contato com o samba pela primeira vez. Escondido da mãe - "Eu não sabia qual era a opinião dela sobre festas desse tipo e achei melhor não perguntar", lembrava ele, com um sorriso ainda maroto, mais de meio século depois - fez uma fantasia com as cores do grupo e foi dançar no salão do Campos Elíseos, antigo cordão carnavalesco da Barra Funda, já desaparecido. Ele se recusa a dizer, ainda hoje, qual era, afinal, a opinião da mãe sobre o carnaval, o que faz supor que não fosse muito favorável. Qualquer que fosse ela, porém, Hélio nunca mais se afastou das rodas de samba das quais se tornou personagem histórico com o apelido de "Bagunça". Hélio Bagunça. Bagunceiro o garoto Hélio certamente era. Tanto assim que dois anos depois daquele encontro inicial com o carnaval, ele já fazia outra traquinagem, participando do pequeno grupo de sambistas que, agrupados em torno de Inocêncio "Mulata" Tobias, recriou o antigo Grupo Carnavalesco Barra Funda, fechado desde 1939, agora com o nome de Cordão Carnavalesco Camisa Verde e Branco. Não era brincadeira para qualquer menino. Para impedir que estranhos invadissem as alas, atrapalhando os passistas, os cordões saíam protegidos por uma corda sustentada por jogadores de capoeira e "tiririca" que repeliam os penetras. Hélio sempre sambou perto das cordas. E o sucesso era tão grande que já no ano seguinte à refundação, o cordão ganharia o carnaval comemorativo do IV Centenário da cidade de São Paulo. Hélio também estava presente quando, em meados dos anos 60, o Camisa Verde foi obrigado a ir desfilar na Bela Vista, território do arqui-rival Vai-Vai. Na época, os organizadores do carnaval costumavam marcar o desfile dos três maiores cordões da cidade - Camisa Verde, Fio de Ouro e Vai-Vai - para dias diferentes e ninguém podia prever o que aconteceria quando eles se encontravam. Mas mesmo assim, lá se foram Hélio e seus companheiros, arrastando alas, carros alegóricos e instrumentos da bateria para o Bexiga. O resultado? - Foi um "fuzuê" - ele define com uma gargalhada. Hélio lembrava com saudade e bom humor daqueles tempos heróicos do samba paulista. E com especial carinho de "Seu" Inocêncio - somente os muito íntimos, ou valentes, para chamá-lo de "Mulata" - e, principalmente de sua mulher, a "Tia Sinhá", espécie de anjo-da-guarda da garotada do cordão. "Ela estava sempre ali, tratando de assuntos bons e ruins, cuidando dos grandes e também dos moleques", lembra Hélio Bagunça. "Parece até que ela adivinhava. Várias vezes nós estávamos com uma fome danada e, de surpresa, ela fazia um jantarzinho para nós". Ou então se juntava às outras mulheres do cordão para, comandadas por uma cozinheira conhecida como "Dona Dulce", preparar um angu à baiana para ajudar a fazer caixa e pagar o tecido das fantasias. O sucesso era tão grande que até artistas, como Jair Rodrigues, e jogadores de futebol famosos apareciam para provar da ótima comida. No Camisa Verde, Hélio conviveu com os grandes bambas da época, como Walter Gomes de Oliveira, o "Pato N'Água", valente e o melhor diretor de bateria da época, que foi do Vai-Vai e do Camisa Verde. Naqueles tempos, diretor de bateria que se prezasse controlava todos os músicos ao som de um apito. "Pato N'Água", querido pelas mulheres e respeitado pelos homens, não apenas dirigia a orquestra, determinando breques para os solos de instrumentos como fazia questão de "chamar" um breque total, quando tocava o Hino Nacional com o apito. Memória do samba paulistano, Hélio já não faz mais bagunça. Nos últimos anos de vida ele acostumou-se a desfilar pelo Pólo - ele não gostava de chamar o Pólo Cultural e Esportivo Grande Otelo de sambódromo - ostentando o título de Cidadão Samba do Carnaval Paulistano. Se sua mãe soubesse qual seria o resultado daquela primeira travessura, certamente não ficaria zangada

  • Nome do Local: Quadra da Camisa Verde e Branco
  • Cidade/Estado: São Paulo/São Paulo
  • Bairro: Barra Funda
  • Endereço: Rua James Holand, 663 - Barra Funda São PauloBarra Funda - São Paulo/São Paulo - 01138-000
  • Site: http://www.camisaverde.net/
  • Telefone: Rua James Holand, 663 - Barra Funda São Paulo, 01138-000(0xx)11 3392-1621
  • Como Chegar

Mapa da casa de show Quadra da Camisa Verde e Branco



Sobre Quadra da Camisa Verde e Branco em Barra Funda São Paulo

A tradição carnavalesca de São Paulo era o cordão. Havia algumas escolas de samba, porém (e sempre tem um, porém), os bambas da pesada eram os cordões. Camisa Verde e Branco (branco mesmo), Vai-Vai, Paulistano da Glória, Campos Elíseos, Som de Cristal eram todos famosos cordões. E o cordão paulista tinha batida diferente das escolas de samba, tinha outras figuras e outras mumunhas. Eu disse “tinha”. Porque, que eu saiba, não existe mais nenhum cordão em São Paulo. Os que não acabaram de vez se transformaram em escolas de samba. Como é o caso do Vai-Vai e do Camisa Verde e Branco, que foram os que mais resistiram, antes de se transformarem em escolas de samba. E o fim dos cordões, sem dúvida nenhuma, se deve ao elitismo, ao paternalismo das autoridades que, quando resolvem incrementar algumas manifestações espontâneas do povo, mesmo quando estão bem intencionadas, só atrapalham. Isso porque as autoridades, sempre tão distantes das bases, tomam suas medidas dentro dos gabinetes, escutando assessores que geralmente se preocupam com o brilhareco que resulte em algum lucro e nunca nos interesses da coletividade.

No caso do samba de São Paulo, não deu outra coisa. O Prefeito Faria Lima resolveu, com a melhor das intenções, oficializar o Carnaval de São Paulo. Mas deve ter consultado gente que sempre achou que nesta cidade não havia samba, nem sambistas. E essa gente, sem vacilar, desconhecendo totalmente o que é Carnaval, desconhecendo que carnaval não se resume apenas em desfiles, nem em escolas de samba, que desfile e escolas de samba são um aspecto do carnaval, que existem vários outros aspectos que também devem ser considerados, essa gente estava interessada na cascata que podia fazer em torno da oficialização do Carnaval e não na preservação dos costumes carnavalescos do povo desta cidade. E então, sem nenhuma cerimônia, fizeram a presepada: oficializaram o Carnaval. Mas, na lei, ficou claro que o único evento carnavalesco que a Prefeitura se via obrigada a realizar era o desfile das escolas de samba. Resultado, todo incentivo da Prefeitura para as escolas de samba e nenhum para os cordões que, diante da indiferença das autoridades, foram se extinguindo ou virando escolas de samba, puxadas aos defeitos das escolas do Rio de Janeiro (é mais fácil copiar defeito que virtude) e se desvinculando totalmente das raízes culturais de São Paulo.

O samba paulista é diferente do samba baiano que se instalou no Rio de Janeiro a partir da casa das “tias”. O samba paulista é mais puxado ao batuque, ao samba de trabalho. Do toco, durão. O samba paulista vem das fazendas de café. O crioulo vindo do interior ia se instalando perto dos locais de trabalho: Jardim da Luz, Barra Funda, Largo da Banana, Praça Marechal, Alameda Glete, Bexiga, Rua Direita, Praça da Sé. E aqui, como no Rio de Janeiro, a polícia perseguia o samba e os sambistas. No Rio de Janeiro, os pagodeiros subiam o morro e a polícia se acanhava, e aí, não havia remandiola. O samba era solto, batido na mão, espalhado pelo terreiro. Aqui, o sambista se recolhia nos porões e lá puxava o samba, mas, naturalmente, não era a mesma coisa. Um samba espalhado debaixo de um céu cheio de estrelas e de luar e um samba espremido em porões, nos quais crioulo de mais de um metro e setenta tinha que mostrar o que sabia todo dobrado, pra não bater com a testa nas vigas. E quando o pagode esquentava, era tanta poeira que subia, que só era possível saber que estava havendo samba pelo ronco da cuíca e pelo gemido do cavaquinho, porque ver, não se via ninguém.

São muitos os grandes sambistas de São Paulo: Vassourinha (Olha aí, carnavalescos de escolas de samba, que andam com mania de enredo com vida de artista: esse foi gente grande e de muita embaixada no rádio), Dionísio Camisa Verde, Marmelada, Jamburá, Feijó, Pato N’água, Sinval, Inocêncio Mulata, Carlão do Peruche, Nenê da Vila Matilde, Pé Rachado, Zezinho do Morro da Casa Verde, Geraldão da Barra Funda, Chiclete, Zeca da Casa Verde, Toniquinho, Nego Braço, Zoinho, Dona Eunice, Sinhá, Donata, tudo gente que mantinha o samba na rua na época em que a polícia acabava samba na base do chanfralho. Tudo gente de valor provado no meio das batalhas. Tudo gente que saía nos cordões pelo prazer de sair, por gostar de samba, por querer sambar. No centro da cidade, muitas vezes, um cordão que ia encontrava um cordão que vinha. Então, era coisa pra valente. Ninguém recuava. Os cordões se cruzavam. Tinha um ritual todo cheio de parangolé. O baliza de pau de um cordão protegia a porta-estandarte do outro cordão. Os estandartes (ou bandeiras) eram trocados com muita gentileza e muito respeito. Depois de um tempo, se destrocavam os estandartes (ou bandeiras) e aí o pau comia. Navalha, tamanco, porrete entravam na fita pra bagunçar o pagode.
Pato N’água foi levar uma cabrochinha lá pras bandas de Suzano. Amanheceu boiando numa lagoa, comido de peixe e de bala.

Dizem que foi a primeira vítima do Esquadrão da Morte. Ninguém sabe direito. Defunto não fala. O que se sabe é que a notícia chegou ao Bexiga à tardinha, na hora da Ave-Maria, e logo correu pelos estreitos, escamosos e esquisitos caminhos do roçado do bom Deus. E por todas as quebradas do mundaréu, desde onde o vento encosta o lixo e as pragas botam os ovos, o povão chorou a morte do sambista Pato N’água. E o Geraldão da Barra Funda, legítimo poeta do povo, chorou por todos num bonito samba chamado Silêncio no Bexiga.

O Largo da Banana era o lugar aonde os caminhões que vinham do interior encostavam pra descarregar. Ali se juntava a curriola. Enquanto não vinha caminhão se armava o samba duro. Jogava-se a tiririca:

É tumba, moleque, é tumba
é tumba pra derrubar
tiririca, faca de ponta
capoeira vai te pegar
Dona Rita do Tabuleiro
quem derrubou meu companheiro
Abre a roda, minha gente
que comigo é diferente

E só parava na roda quem se garantia. E o Inocêncio Mulata (ex- presidente do Camisa Verde e Branco da Barra Funda) sabia tudo. Tudo e mais alguma coisa. E no Carnaval, puxava no surdão um famoso trio de couro. Ele no surdão, o Feijó na caixa de guerra e o Zoinho no tamborim. Paravam num boteco qualquer e começavam a zoar. Ia juntando gente, juntando gente e aí o rio saía pela Barra Funda, com uns duzentos sambando atrás. Na Praça Marechal, já eram dois mil, na Glete, cinco mil. Aí, era zorra, zorra total, até a polícia chegar. Foi nesse trio de couro que o Inocêncio ganhou o apelido de Mulata. Logo ele, que não é de fazer careta pra cego, resolveu aprontar pro Feijó, que não podia ver rabo de saia. O Inocêncio pegou um vestido da Dona Sinhá, meteu um turbante, se embonecou e ficou na moita. O Feijó e o Zoinho, que estavam no boteco esperando o companheiro de trio, foram tomando todas.

Quando já estavam bem bebuns, e achando que o Inocêncio não viria mais, ele se apresentou vestido de mulher. Fez sucesso pro Feijó, que achou aquilo uma tremenda mulata e foi logo pagando cerveja. Mais encantado ainda ficou o Feijó quando aquela mulata pegou no surdo e mandou ver. O trio saiu. O Feijó todo preocupado com a mulata e alimentando ela com cerveja até a Glete. Aí, o Feijó resolveu partir com tudo. Se entortou. O Inocêncio tirou o turbante e se apresentou. O patuá do Feijó entortou. Mas o Inocêncio ganhou pra sempre o apelido de Mulata.

Mas a guerra se avacalhou. Não existe mais trio de couro, nem bloco de sujo, nem vai-quem-quer. Essas manifestações espontâneas do povo, que sempre a polícia tentou acabar sem conseguir, acabaram graças às promoções carnavalescas da Prefeitura. No lugar dessas coisas todas, a Prefeitura meteu o Trio Elétrico. A própria poluição sonora, que com guitarras elétricas e grandes aparelhos de som, esmagavam, apagavam qualquer instrumento de couro batido por um sambista. Alguns músicos defendiam essa jeringonça como mercado de trabalho, mas se esqueciam que um toca-fitas e uma Kombi faziam o mesmo efeito que esse trio elétrico. E esqueciam que faltava mercado de trabalho porque muitos bailes de Carnaval em São Paulo eram animados por toca-fitas e que a própria Prefeitura promovia um bailão pra quarenta mil pessoas, com toca-fitas.

São Paulo sempre teve muito carnaval. Mas hoje está tudo resumido no desfile das escolas de samba e nos bailes dos clubes. E isso tudo é muito triste. Porque o Carnaval sempre serviu pras manifestações espontâneas do povo. E tudo agora vai se resumindo num espetáculo pra atrair turista. Feito no gosto dos turistas e avaliados pelos padrões culturais das elites. E isso dói. Porque um povo que não ama e não preserva suas formas de expressão mais autênticas jamais será um povo livre.

Hélio fez história, não bagunça, ele fez a primeira fantasia para brincar no carnaval escondido da mãe. Hélio Romão de Paula, o Hélio Bagunça, é parte da memória samba paulistano.

por Letícia Delamare

Foi em 1951, menino ainda, que Hélio Romão de Paula fez contato com o samba pela primeira vez. Escondido da mãe – “Eu não sabia qual era a opinião dela sobre festas desse tipo e achei melhor não perguntar”, lembrava ele, com um sorriso ainda maroto, mais de meio século depois – fez uma fantasia com as cores do grupo e foi dançar no salão do Campos Elíseos, antigo cordão carnavalesco da Barra Funda, já desaparecido. Ele se recusa a dizer, ainda hoje, qual era, afinal, a opinião da mãe sobre o carnaval, o que faz supor que não fosse muito favorável. Qualquer que fosse ela, porém, Hélio nunca mais se afastou das rodas de samba das quais se tornou personagem histórico com o apelido de “Bagunça”. Hélio Bagunça.

Bagunceiro o garoto Hélio certamente era. Tanto assim que dois anos depois daquele encontro inicial com o carnaval, ele já fazia outra traquinagem, participando do pequeno grupo de sambistas que, agrupados em torno de Inocêncio “Mulata” Tobias, recriou o antigo Grupo Carnavalesco Barra Funda, fechado desde 1939, agora com o nome de Cordão Carnavalesco Camisa Verde e Branco. Não era brincadeira para qualquer menino. Para impedir que estranhos invadissem as alas, atrapalhando os passistas, os cordões saíam protegidos por uma corda sustentada por jogadores de capoeira e “tiririca” que repeliam os penetras. Hélio sempre sambou perto das cordas. E o sucesso era tão grande que já no ano seguinte à refundação, o cordão ganharia o carnaval
comemorativo do IV Centenário da cidade de São Paulo.

Hélio também estava presente quando, em meados dos anos 60, o Camisa Verde foi obrigado a ir desfilar na Bela Vista, território do arqui-rival Vai-Vai. Na época, os organizadores do carnaval costumavam marcar o desfile dos três maiores cordões da cidade – Camisa Verde, Fio de Ouro e Vai-Vai – para dias diferentes e ninguém podia prever o que aconteceria quando eles se encontravam. Mas mesmo assim, lá se foram Hélio e seus companheiros, arrastando alas, carros alegóricos e instrumentos da bateria para o Bexiga. O resultado?
– Foi um “fuzuê” – ele define com uma gargalhada.
Hélio lembrava com saudade e bom humor daqueles tempos heróicos do samba paulista. E com especial carinho de “Seu” Inocêncio – somente os muito íntimos, ou valentes, para chamá-lo de “Mulata” – e, principalmente de sua mulher, a “Tia Sinhá”, espécie de anjo-da-guarda da garotada do cordão. “Ela estava sempre ali, tratando de assuntos bons e ruins, cuidando dos grandes e também dos moleques”, lembra Hélio Bagunça. “Parece até que ela adivinhava. Várias vezes nós estávamos com uma fome danada e, de surpresa, ela fazia um jantarzinho para nós”. Ou então se juntava às outras mulheres do cordão para, comandadas por uma cozinheira conhecida como “Dona Dulce”, preparar um angu à baiana para ajudar a fazer caixa e pagar o tecido das fantasias. O sucesso era tão grande que até artistas, como Jair Rodrigues, e jogadores de futebol famosos apareciam para provar da ótima comida.

No Camisa Verde, Hélio conviveu com os grandes bambas da época, como Walter Gomes de Oliveira, o “Pato N’Água”, valente e o melhor diretor de bateria da época, que foi do Vai-Vai e do Camisa Verde. Naqueles tempos, diretor de bateria que se prezasse controlava todos os músicos ao som de um apito. “Pato N’Água”, querido pelas mulheres e respeitado pelos homens, não apenas dirigia a orquestra, determinando breques para os solos de instrumentos como fazia questão de “chamar” um breque total, quando tocava o Hino Nacional com o apito.

Memória do samba paulistano, Hélio já não faz mais bagunça. Nos últimos anos de vida ele acostumou-se a desfilar pelo Pólo – ele não gostava de chamar o Pólo Cultural e Esportivo Grande Otelo de sambódromo – ostentando o título de Cidadão Samba do Carnaval Paulistano. Se sua mãe soubesse qual seria o resultado daquela primeira travessura, certamente não ficaria zangada